segunda-feira, 31 de março de 2008

O Tango de Rashevski



O peso da tradição e da religião em vidas diversas

É mesmo meio clichê: em O Tango de Rashevski, o amor é mais importante do que a tradição e a religião.

Sam Garbarski, diretor alemão com larga experiência na produção de vídeos publicitários, lançou o seu primeiro longa em 2003. Trata-se de O Tango de Rashevski, que só chegou a Salvador agora, junto com o seu segundo filme, Irina Palm (leia crítica aqui).

O diretor não tem mistérios: a narrativa é linear e clara, os personagens comportam-se como esperado, e a história ainda acaba, de algum modo, com um final que pode ser considerado feliz. Mas há um diferencial nos dois filmes do diretor em cartaz nas salas soteropolitanas: a qualidade e criatividade das histórias contadas. E quando vamos ao cinema, o que queremos além de um bom enredo?

O Tango de Rashevski começa com uma morte. E também termina como uma. Sam Garbarski mostra que o fim é também um novo começo. E é assim que da morte de Rosa, a matriarca de uma família judia “não-praticante”, nascem conflitos individuais bem diversos: o filho que finalmente passa a se sentir judeu, o outro que é obrigado a enfrentar uma esposa também em crise, por não ser judia, o neto apaixonado por uma árabe e a neta que, filha de uma “gói” (não judia), busca um marido ortodoxo, como se isso fosse finalmente lhe garantir a identidade religiosa que sua família de alguma forma lhe negou. Complementa a quadro de personagens Dolfo, o simpático “tio”, que não fala dos campos de concentração e prefere os prazeres da vida às praticas religiosas.

Divertido e leve, o filme, de fato, apela para clichês como o jovem judeu que serviu ao exército Israelense e agora apaixona-se por uma árabe. Mas a reflexão sobre a ligação dos personagens com a tradição e a religião é bem desenvolvida, são mostradas diversas possibilidades de ligação com aquilo que poderíamos denominar “de onde viemos” e ainda traz uma bela lição: um tango pode ser muito mais representativo do que um pênis circuncisado, na relação entre o nosso passado e aquilo que nos tornamos no presente.

domingo, 30 de março de 2008

Crítica de cinema: Angel


Conto de fadas para adultos

François Ozon, diretor de Oito Mulheres e Swimming Pool, opta por melodrama em "Angel"

Angel é a jovem talentosa e criativa, menosprezada pela professora e pelos colegas de uma pequena cidade no interior da Inglaterra. Em nome dos clichês, é filha da dona da mercearia, que obviamente não acredita na possibilidade de Angel tornar-se uma escritora. A jovem sonha em morar na Mansão Paraíso, casa burguesa da qual a sua tia é empregada. Traçado todo o sofrimento nos primeiros dez minutos de filme, nos seguintes Angel consegue o reconhecimento de um editor, e faz um sucesso estrondoso.

Daí em diante, a primeira hora de filme é isso mesmo: linguagem de desenho animado, interpretação, trilha sonora e fotografia de dramalhão. Tudo faz crer estarmos assistindo a um desenho animado da Disney. Só uma coisa destoa: Angel se torna a cada minuto mais insuportável. Imersa em suas fantasias, compra a sonhada Mansão Paraíso e escolhe a dedo um príncipe encantado. E é assim que o mundo mágico de Angel vai sendo construído na frente do espectador, e todos os recursos técnicos corroboram para o conto de fadas.

Até que - finalmente! - na segunda hora de filme, o melodrama de François Ozon ganha consistência e o conto de fadas vai ganhando cores de realidade. Começa a guerra, o príncipe encantado pula fora da história e até as brilhantes história de Angel não têm a mesma receptividade. E é aí que o filme vale a pena ser visto: a fantasia fácil é tão irritante que até a realidade - sempre dura - é mais agradável, simplesmente por ser real.

domingo, 23 de março de 2008

Crítica de Cinema: Cada um com seu cinema


O cineasta e o cego

Trinta e três cineastas foram convidados a dirigir curtas-metragens que tratassem da relação do espectador com o cinema, em comemoração ao 60. aniversário do Festival de Cannes. Dois ou três minutos nas mãos de grandes nomes do cinema contemporâneo, como Alejandro Iñárritu, David Lynch, Gus Van Sant, Roman Polanski, Lars Von Trier, Win Wenders e Walter Salles, resultam em um pouco de tudo – ou de nada.

Não se trata de uma obra única e, portanto, gostar ou não gostar de “Cada um com seu cinema” é difícil. Gostamos muito de algumas coisas, pouco de outras, e nada de algumas poucas. Para mim, que tenho assumida dificuldade com a linguagem do cinema oriental, mesmo três minutos de alguns pequenos filmes se tornaram cansativos.

Dentro os pontos negativos, sinalizo duas ausências. Em primeiro, a falta de um diretor africano. Ignoro a situação do cinema africano, e parece que Cannes faz o mesmo. Os outros continentes estão bem representados, mas, da África mesmo, só a visão européia – e sensível – de Win Wenders. A outra ausência – que, acredito, outros fãs devem ter notado – é de Almodóvar, já premiado em Cannes com “Tudo sobre minha mãe” (melhor diretor). E faz falta mesmo.

Outro ponto interessante é o fato de três dos diretores tratarem de uma tema inusitado (ou não): o espectador cego. Alejandro Iñárritu deixa de lado a violência de Amores Brutos, Babel e 21 gramas e presenteia-nos com Anna. A angústia de Anna talvez importe menos do que a dos diretores que resolveram tomar este caminho. E que, aliás, pode ser de todos nós. Quantas vezes não estaremos fazendo cinema para cegos? Quantos de nossos espectadores já saíram das salas de cinema sem saber se o filme que dirigimos é em cores ou preto-e-branco?

Para quebrar o clima de aflição em saber até onde a mensagem que desejamos passar será alcançada pelo interlocutor – o que, creio, tenha excelente representação na imagem do espectador cego – só Walter Salles, com Caju e Castanha. Ou Lars Von Trier que, como muitos de nós, já desejou matar o espectador da cadeira ao lado. Para quem gosta de cinema, “Cada um com seu seu cinema” é uma boa pedida.

Assista ao curta de Alejandro Iñárritu aqui.

Obs.: não citar o excelente "Cinema erótico" de Roman Polanski foi um lapso. Também pode ser assistido no YouTube.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Crítica de Cinema: Irina Palm






















Calem-se, por favor.


Dirigido por Sam Garbarski, e estrelado por Marianne Faithfull (cantora e atriz britânica, ex-mulher de Mick Jagger), estreou esta semana em Salvador "Irina Palm". O filme conta a história de Maggie, mulher de meia-idade que face ao desespero de ver o neto doente e não ter dinheiro para custear o tratamento, passa a trabalhar num clube privê em Londres. O trabalho de Maggie consiste em masturbar homens por meio de um buraco na parede. Competente, faz nome e torna-se uma estrela no bordel.

Irina Palm trata de temas delicados: a relação entre mãe e filho, o preconceito e a hipocrisia de uma pequena cidade inglesa e as possibilidades que uma mulher que nunca havia feito nada de relevante em sua vida ao chegar à casa dos 50 anos.

Agora já posso explicar o título deste texto. Pela sinopse do primeiro parágrafo e também pelo seguinte, pode-se perceber que se trata de um drama, evidentemente constrangedor. Ou alguém se sentiria à vontade em ver a sua mãe masturbando homens através de um pequeno buraco? O público, contudo, ria e conversava copiosamente. A falta de educação, tão freqüentemente observada em espaços públicos, soma-se àquilo que acredito ser a mais fácil fuga ao constrangimento provocado pela delicada história: ri-se para mostrar aos outros que não se está desconfortável. E ri-se alto, conversa-se, comenta-se, como se estivesse numa mesa de bar. Aquele riso constrangido e nervoso - acredito - não surge da graça, mas tão-simplesmente da dificuldade que temos - uns mais, outros menos - de encarar os dramas dos outros, que poderiam ser - ou são - também nossos.

É lamentável que até os toques de humor, tipicamente british, passem desapercebidos por uma platéia ávida pela riso fácil, e alto, que lhe provoca a simples menção à expressão "bater punheta". Felizmente, porém, Sam Garbarski encara a história de Irina Palm como ela deve ser vista: o sofrimento e a descoberta de uma mulher sobre as possibilidades que a vida ainda pode lhe oferecer, a despeito das amarras que família, amigos e sociedade tentam lhe impor. Será que podemos re-escrever o perfil dos nossos personagens no roteiro da vida que levamos?

quinta-feira, 13 de março de 2008

Crítica de cinema: Desejo e Reparação

Haverá paradeiro
Para o nosso desejo
Dentro ou fora de um vício?

Uns preferem dinheiro
Outros querem um passeio
Perto do precipício.

Haverá paraíso
sem perder o juízo e sem morrer?

(Paradeiro, Arnaldo Antunes)





Na Inglaterra da década de 30, Briony, adolescente aristocrata com vocação para literatura (e para fantasia) constrói, a partir de seu sentimento que mistura amor e ciúmes por Robbie (o filho da governata) e por Cecília (sua irmã), histórias a partir do que vê - e, sobretudo, do que deseja ver.

É com base nesta sua visão deturpada da realidade que a protagonista toma a decisão que determinará o seu futuro e daqueles que a circundam: acusa Robbie de haver estuprado uma prima que passava uma temporada em sua casa, o que implica a prisão do rapaz e seu posterior alistamento às fileiras de soldados ingleses.

"Haverá paradeiro para o nosso desejo?", pergunta Arnaldo Antunes. É o que Ian McEwan investiga na obra que inspira o filme, "Atonement". A tradução para o português, ao menos no título, prezou pela inteligência. O acréscimo de "Desejo" à "Reparação" do original inglês é adequado à trama.

O caminho da redenção buscado por Briony foi a arte. É na literatura que ela encontra vazão para a necessidade de reparar o ato irresponsável praticado na adolescência. E é aí que se casam o best-seller de McEwan e a direção de Joe Wright. As seqüências megalomaníacas da guerra - que, a princípio, causaram incômodo a mim - mostram-se correspondentes à imaginação de Briony, que divide a autoria do roteiro com o próprio McEwan.

Uma crítica à versão nacional: mais uma vez, os tradutores brasileiros - a quem até elogiei acima - pecam pela síndrome do politicamente correto. Rosana Pasquale traduz "cunt", verbete dos mais pesados em inglês britânico, para "vagina". Primeiro problema: "cunt" significa "boceta". Segundo: é a força da palavra - propositalmente vulgar - que desencadeia uma série de conflitos no filme. Os puritanos tradutores brasileiros de fato acreditam que "fuck off" significa "dane-se"?

Vale o ingresso e a reflexão sobre as conseqüências das ações que tomamos em nome do desejo (ou das que deixamos de tomar). Recomendo a excelente resenha de Contardo Calligaris sobre o filme, publicada na Folha de São Paulo, e disponível na internet.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Crítica de cinema: Sicko - $O$ Saúde



Para americano ver


Assistir a SICKO é como conversar com alguém que o trata como um imbecil. Todas as conclusões estão postas e o recurso ao discurso simplório e maniqueísta (tipicamente americano, aliás) é freqüente. Falta a Michael Moore um pouco de sutileza.

Trata-se de um documentário sobre o sistema de saúde norte-americano. Moore, que afirma serem os EUA o "único país ocidental em que os cidadãos não têm amplo acesso à saúde", revela o funcionamento inescrupuloso das seguradoras de saúde e a conjuntura política que levou a maior potência mundial a optar por um sistema prioritariamente privado nesta área.

O tom do documentário é de deboche do começo ao fim. Se isto já deixa de ser engraçado e logo torna-se incômodo, o que mais irrita é a simplificação absoluta do discurso. Ao fim do filme, Moore não só propõe como conclui ele mesmo: os EUA são o inferno, em contraposição a paradisíacas Cuba, França e Grã-Bretanha, onde o acesso à saúde é universal.

Os personagens de Moore são rasos e superficiais. Como ele. Todos servem à causa da luta contra as seguradoras de saúde, mas a sua opção política e trajetória de vida são ignoradas.

João Moreira Salles, em ensaio publicado na Bravo (fevereiro, 2008) afirma que Michael Moore contribuiu decisivamente ao gênero dos documentários sociais, acrescentando-lhe humor. Deve ser verdade. Mas como bem sabe o cineasta brasileiro, que, com brilho, fez seu mea-culpa no imperdível Santiago, os entrevistados são bem mais do que aquilo que queremos que eles sejam. E é isso que os torna interessantes.

Duas horas não são suficientes para que consideremos um filme longo. Com Sicko, isso acontece. E a razão é simples: o gênero e o discurso de Moore se prestam antes ao horário eleitoral da TV do que às grandes telas.